sexta-feira, 12 de junho de 2009

O perfil das pessoas evidenciado nos ônibus de Porto Alegre

Os ônibus públicos de Porto Alegre são um reflexo da sociedade brasileira. Em um coletivo comum, lotado, em horário de grande movimento, no inicio ou fim do dia, vivenciam-se as mais diversas, inusitadas, cômicas e até decepcionantes cenas. Há todo tipo de passageiro, de cobrador, de motorista e, consequentemente, encontra-se sujeitos com todo tipo de humor, caráter, educação, paciência, postura e valores.

Em uma breve viagem em um ônibus lotado, um espaço coletivo e único meio de transporte da maioria da população, as características intrínsecas de cada um sobressaem-se e não conseguem ser disfarçadas. É possível observar o perfil psicológico das pessoas simplesmente pelo comportamento por elas apresentado nos ônibus da cidade. A forma como se portam em um ônibus é uma questão de cidadania, de boa convivência e relacionamento em sociedade. A conduta idônea ou desonesta e a forma de se portar revelam muito sobre o perfil de cada um.

Começando pelos motoristas, existem aqueles do tipo Apressadinhos, que não param quando você está correndo em direção à parada, atrasado, cheio de sacolas, casacos, guarda-chuva, gritando, acenando e implorando: “ônibus, por favor, pelo amor de Deus, espere!”. Geralmente essa situação acontece no dia que você tem algo importante pra fazer e já está super atrasado. O Apresssadinho arranca e deixa você esperando mais 20 minutos até o próximo ônibus. “Filho da puta”, você pensa, mas não há mais nada que possa ser feito. Além disso, o Apressadinho não pode ver uma velhinha subir os degraus da frente para rapidamente (mais rápido do que das outras vezes) arrancar o veículo, fazendo com que a pobre coitada quase caía (ou despenque mesmo, esburrachando-se no chão).

Mas não sejamos injustos. Entre os motoristas, há também o tipo Prestativo. É aquele que espera quando você está do outro lado da rua, tentando atravessar e não para de vir carro. Mesmo assim, ele para e fica te esperando atravessar. Prestativo espera as velhinhas entrarem e sentarem no banco para só depois arrancar. Prestativo te reconhece quando você pega mais de uma vez o mesmo ônibus. Ele te cumprimenta, diz bom dia, pergunta como vai, como se fossem velhos conhecidos. O Prestativo transforma aquele espaço minúsculo, onde você precisa permanecer confinado e amontoado até a hora de descer, em um local mais agradável e tranquilo. Prestativo é um motorista simpático, sorridente, de bem com a vida, que causa inveja e ódio ao Apressadinho.

Passando ao perfil dos cobradores, o mais comum é o Quietão. Esse não incomoda ninguém, faz o seu trabalho. Responde as informações sobre em qual parada as pessoas devem descer, onde fica tal rua, tal ponto de referência. Geralmente Quietão é bem localizado, conhece os bairros por onde circula a linha. Não reclama do troco, não te olha de cara feia se você paga com uma nota de vinte reais a passagem ou até mesmo de cinqüenta. Quietão é o típico cobrador que não incomoda e cumpre com dignidade sua função.

O mais irritante, entre cobradores de ônibus, eu diria, é o Passinho a Frente. Esse tipo repete incessantemente, a cada parada, de forma mecânica e repugnante, a sentença: “Passinho a frente, por favor”, “Passinho a frente, por favor”, às vezes intercalando com “Subindo e passando, por favor”, “Subindo e passando, por favor”. Trata-se de um tipo sério, que não sorri, não conversa com os passageiros sobre qualquer outra coisa a não ser para lhes pedir que passem a roleta e deem mais um passinho a frente.

Chegando, então, ao perfil dos passageiros. Eis o nicho onde há maior variedade de tipos. O estilo Apressadinho, já apresentado entre os motoristas, repete-se entre os passageiros, com algumas peculiaridades. Trata-se do Apressadinho para entrar no ônibus, que já na parada joga-se na frente de todos para entrar primeiro e pegar os melhores lugares. Após entrar, Apressadinho continua com pressa para passar a roleta. Depois que a passa, a pressa é para arremessar-se rumo a algum banco vazio e sentar primeiro, antes que os outros roubem os poucos lugares restantes.

O próximo passageiro é o tipo Educado. Este representa uma espécie mais rara, que precisa ser valorizada toda vez que é encontrada. É rapidamente identificável em qualquer percurso. Educado espera todos entrarem, entra calmamente no ônibus, cumprimenta o cobrador, o motorista, dá assunto para as velhinhas que adoram conversar com ele, cede o lugar aos idosos, mulheres e crianças. Ao esbarrar em alguém, pede desculpas. Pede com licença ao sentar do lado de alguém e na hora de levantar também. É gentil com todos, sorri, não é mal humorado.

É exatamente o contraste do De Mal Com a Vida. Esse, por sua vez, entra no ônibus brabo, com cara de sono, cansado, irritado. De cara amarrada e, muitas vezes, amassada. Não suporta piadinhas, não suporta pessoas conversando alto, ouvindo música, não gosta de receber bom dia, não suporta nada. De Mal Com a Vida são aqueles que não deveriam ter saído da cama. Sua simples presença atrapalha e perturba o ambiente.

Existe ainda o tipo Espertinho. É o estilo malandro, que não quer pagar a passagem. Entra no ônibus e simula que esqueceu o dinheiro em casa. Às vezes inventa uma história de que foi roubado para poder andar de graça. Em determinadas situações, Espertinho tenta tirar vantagem do cobrador na hora de receber o troco ou pagando dinheiro a menos. Espertinho está constantemente em busca de uma brecha onde possa tirar proveito dos outros e conquistar de forma ilícita algum benefício.

O tipo mais pacato dentro de um coletivo hoje em dia, não há como negar, é o Na Dele. Esse, sim, não incomoda ninguém, não se irrita com facilidade, fica quieto, entra no ônibus em silêncio, sai em silêncio. Senta se tiver lugar, se não tiver viaja de pé tranquilamente sem pestanejar. Na Dele é o modelo ideal, o sonho dos motoristas e cobradores, que queriam que todos os passageiros fossem como ele.

Na Dele é tão quietinho que não dá bola sequer para as Típicas Senhoras. São velhinhas que pegam ônibus o tempo todo para ir na maioria das vezes ao Centro comprar condimentos no Mercado Público ou artesanato nas lojas de antiguidades. Elas sentam na frente, não querem passar a roleta. Algumas Típicas Senhoras têm carteirinha e passam para a parte de traz, mas a maioria prefere sentar na frente para puxar assunto com o cobrador e o motorista, que geralmente não estão nem um pouco interessados em escutar as histórias a respeito de todas as gerações de suas famílias que elas adoram contar.

Entre tantos tipos e estilos, nota-se o perfil variado de quem pega ônibus na capital gaúcha. Andam de ônibus desde as pessoas mais humildes, trabalhadores, desempregados, crianças, famílias, jovens, de todas as classes, religiões, bairros, partidos políticos, crenças. Há outros inúmeros tipos que circulam nas linhas de Porto Alegre. Observar a população em um espaço de convivência pequeno como um ônibus público permite perceber, com olhar atento, os traços que diferenciam e assemelham as pessoas. Estar confinado em um ônibus, ou seja, em uma situação desgastante, mesmo que por alguns minutos, é uma maneira de percebermos o caráter do ser humano.

Já que não há alternativa senão enfrentar diariamente a maratona de ônibus na cidade, nada melhor do que aproveitar esses momentos para entendermos um pouquinho sobre psicologia e analisarmos o comportamento das pessoas em sua vida em sociedade.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Atendimento pelo plano de saúde

Eu chegava na clínica onde iria fazer fisioterapia para um problema de tendinite que tenho no braço. Peguei o ônibus, desci na parada indicada e encontrei o endereço, munida da requisição do meu médico e da carteirinha do plano de saúde. Uma fila enorme do lado de fora. Nossa, a consulta com o fisioterapeuta iria demorar! A fila saía pela porta do local e ocupava quase meia quadra. Mulheres, crianças, homens novos e idosos aguardavam. Alguns de pé, outros sentados no chão, no degrau da calçada, conversando e tentando se distrair para passar o tempo.

Estacionado em frente à clinica, um micro-ônibus com a inscrição “Secretaria Municipal da Saúde de Nova Bréscia”. O problema da saúde pública nesse país veio à tona em minha mente. Porto Alegre não tem estrutura suficiente para atender sequer seus pacientes, moradores da cidade, e precisa receber a população do interior do Estado, cujas prefeituras estão em piores condições. A indignação tomou conta de mim. Os municípios do interior não conseguem dar tratamento aos pacientes e precisam deslocar as pessoas mais de 200 quilômetros até a Capital. E ali eles ficavam: esperando de pé, do lado de fora da clínica que era muito pequena para comportar a todos, sem estrutura alguma, no meio da calçada, naquela fila enorme. Sem dignidade, sem nenhuma consideração, sem ninguém que realmente se importasse com aquela situação.

Entrei para me certificar de que era ali mesmo e para pedir uma estimativa de tempo de espera. O balcão estava cheio. Muitos em volta tentavam fazer perguntas. As pessoas precisavam de uma resposta, de uma expectativa, de uma explicação, atenção, cuidados e, acima de tudo, um tratamento digno, como qualquer ser humano merece.

Na minha frente uma mulher com uma criança no colo pedia informações para a recepcionista, que parecia não ter muita boa vontade e disposição para ajudá-la. Aquela fila gigante parecia ser o cenário rotineiro daquele lugar. Escutei a senhora com a criança responder que sua consulta era pelo SUS e observei que se dirigiu ao fim da fila, do lado de fora da clínica. Pelo menos umas 50 pessoas havia antes dela. Eu seria a 51ª, pensei, percebendo que aquilo iria demorar demais e já cogitando voltar para casa e deixar a fisioterapia para outro dia. Perguntei para a recepcionista sobre a minha consulta. De forma irritadiça ela me apontou ao lado e disse “Pelo convênio é ali naquela porta”.

Segui a instrução e entrei em uma salinha ao lado, onde havia outro balcão, sem ninguém na frente. Uma sala de espera onde umas quatro ou cinco pessoas aguardavam. Uma televisão e ar-condicionado ligado, uma mesa de canto possuía revistas e cafezinho. Mostrei minha carteirinha do convênio, assinei a papeleta e em menos de dez minutos fui atendida. A fisioterapeuta me atendeu por cerca de uma hora. Agendamos as próximas consultas. Eu teria que fazer dez sessões. Todas pelo convênio, é claro, naquele mesmo lugar, passando na frente de todas as pessoas que lá ficariam esperando por horas e horas, entrando na salinha ao lado e sendo atendida rapidamente.

Sai da consulta com um sentimento de culpa. Indignada comigo mesma e com aquela injustiça. Eu tinha um plano de saúde, eu tinha dinheiro para pagar um plano de saúde e, por isso, era atendida. Aquelas tantas pessoas aguardavam do lado de fora, continuavam no mesmo local que estavam antes de eu entrar para a ala dos convênios da clínica. Elas também precisavam de atendimento, tanto quanto eu. Algumas deveriam ter problemas bem mais graves que o meu inclusive. Aquela música “burguesinha, burguesinha, burguesinha...” veio em minha mente. Eu era realmente uma privilegiada. Aquilo não era justo.

Ao lado de fora, a mesma mulher que antes estava na minha frente, esperava com sua filha nos braços chorando. A criança chorava e ela tentava confortá-la. A mulher embalava o bebê nos braços para tentar fazê-lo dormir. Atrás dela, a fila aumentara mais ainda e seguia quase até o final da quadra. As pessoas paradas com olhares tristes, desiludidos e sem esperança. Parecia impossível ser otimista em uma situação como aquela. Percebi que aquelas pessoas não eram tratadas como seres humanos e sim como animais, sem respeito algum. Elas não possuíam uma identidade própria, uma particularidade. Pareciam, todos juntos, uma massa humana de condenados a esperar indefinidamente por atendimento em uma fila gigantesca.

Eu teria que voltar mais dez vezes naquele lugar para fazer as demais sessões de fisioterapia e teria que presenciar aquela injustiça novamente. Eu deveria me dirigir direto à salinha ao lado. Refletia sobre aquilo e não sabia o que fazer, embora quisesse ajudar e mudar aquilo tudo. Na medida em que eu passava na frente de todos que esperavam, estava contribuindo para reforçar aquela discriminação. Nas vezes seguintes, eu chegava lá, era atendida da mesma forma rápida e eficiente. Tomava cafezinho na salinha de espera, enquanto todos os outros estavam lá fora esperando pelo atendimento do SUS. Eu era realmente uma burguesinha!