segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Canção silenciosa

Meia-noite. Minha irmã toca teclado no apartamento. A essa hora, usa fones de ouvido. Em prédio, o horário de silêncio é lei.

Toca no quarto dela, ao lado do meu. Não incomoda os vizinhos. Não incomoda nossos pais. Incomoda apenas a mim. Não pelo barulho da música alta àquela hora, pois isso não ocorre. Ela me surpreende e me inquieta com o som seco das teclas que ecoa surdo pelo cômodo do apartamento.

Teclas apertadas com força, ora com mais intensidade, ora com menos, ora em ritmo frenético, ora calmamente.

O som seco das teclas que não produzem música – produzem um ruído seco – me instiga. Entro de mansinho. Ela não me olha. Não percebe minha presença. Continua a tocar. Dedilha notas sobre o conjunto de teclas. Agora em ritmo mais rápido.

Ela vive outra dimensão naquele instante. Uma dimensão que eu não alcanço porque não escuto o mesmo que ela escuta. A melodia daquelas notas não pode ser percebida por mim.

Só ela sabe o que está tocando nesse momento. Qual música especificamente? Qual melodia estaria produzindo e escutando através daqueles enormes fones, que lhe contornam a cabeça e lhe cobrem as orelhas?

Tocar com fones de ouvido é a forma mais egoísta do mundo de se produzir música. A música precisa se espalhar pelos ares, pelo ambiente, precisa ser admirada e ouvida por todos – pela família, pelos vizinhos, pelos amigos, e por mim, é claro.

Eu estava ali. Ouvia o ruído surdo das teclas baterem, sem ter a menor idéia de o que ela tocava.

Ninguém percebe o som do choque mecânico dos dedos quando se toca da forma convencional, sem os fones.

O som que escuto dos dedos batendo no instrumento musical existe por trás de qualquer canção produzida por um teclado. É um som jamais ouvido por mim antes ou ao menos trata-se de algo que jamais prestara atenção.

Adentro completamente o quarto decidida a pedir para que ela tire os fones e toque um pouquinho para eu ouvir. Agora ela percebe minha presença, pára de tocar e me olha.

Quero ouvir um pouquinho, digo baixinho. Ela me olha desconfiada e faz menção de que vai tirar os fones. Não, não precisa, quero ouvir assim com os fones mesmo, respondo subitamente sem saber bem por quê.

Talvez os ruídos secos produzidos pelos dedos da minha irmã fossem o exato encanto daquela música. Eu imaginava através deles o que quisesse. Ela poderia estar tocando Bach, Beethoven, Vivaldi ou uma composição própria – não importava.

Sou grata a ela por tocar com aqueles fones. Se eu escutasse realmente a música, talvez aquele momento não fosse tão mágico e belo. Eu mesma compunha mentalmente a melodia que eu bem quisesse. Uma canção encantadora, que eu mesma criara...

Um comentário:

K - Jú disse...

Adorei tata!!!!!!!!
brigada!!!
me chamou de egoista, mas tudo bem hehehehehe
beijaaao!!!!!!!