sábado, 30 de maio de 2009

O jeitinho (des)honesto do brasileiro

Proposta: dissertação de tema livre

O “jeitinho brasileiro”, já consagrado no imaginário coletivo, degenera e corrompe o entendimento e a percepção que os brasileiros fazem de si mesmos. A imagem que vendemos de nós, brasileiros, para nós mesmos e para o exterior é a pior possível. O estereótipo de que o brasileiro dá o seu “jeitinho” para resolver as coisas, de que arruma uma forma fácil, ilícita ou pouco idônea para conseguir o que quer, a noção de trapaça e de tirar proveito dos outros, prejudica a nossa identidade e a nossa auto-estima enquanto nação.

Todos os povos e países têm suas características e identidades. Alguns destacam-se pela soberania, outros pelas guerras, outros pela pobreza ou por conflitos ideológicos. O Brasil destaca-se, por sua vez, pela noção de subdesenvolvimento que fazemos de nós mesmos e pelo “jeitinho” trapaceiro que resolvemos nossos problemas.

Ao falar-se em Brasil, a imagem imediata do malandro, do aproveitador e do sacana se sobressai. Trata-se seguramente de uma generalização, é verdade, mas de uma generalização perigosa e precipitada. Na medida em que se propaga essa ideia ressaltam-se nossos aspectos negativos, fragilidades e senões. O escândalo recente das passagens aéreas, por exemplo, em que deputados e senadores valeram-se do “jeitinho” para bancar transporte aéreo de familiares com dinheiro público, corrobora com o negativismo, o pessimismo, a decepção e a vergonha que sentimos ao nos referirmos a nós mesmos.

Não creio, contudo, que o Brasil seja, realmente, o país do “jeitinho”. Esses pilantras não representam a imagem de uma nação inteira, de toda a nossa população. O Brasil não é apenas o país do escândalo das passagens. O problema é que a população não sabe ressaltar os aspectos positivos do país e do cotidiano a ponto de mudar essa imagem consolidada. Supervalorizamos as notícias negativas e ignoramos as positivas. Destacamos aqueles aproveitadores e escondemos a maioria honesta e trabalhadora da população. Não comentamos os fatos louváveis, as atitudes honrosas e admiráveis.

Essa semana, a atitude de um colega de trabalho me chamou atenção positivamente. Ele encontrou uma nota de dez reais no chão e tentava incessantemente encontrar o dono. Sabia que o valor pertenceria a alguma das pessoas que estavam próximas. Sem dar um “jeitinho” e apoderar-se da nota, ele não sossegou enquanto não encontrou o dono.

O Brasil está repleto de atitudes como essa, todos os dias e a todos os momentos - atitudes honestas e que revelam o caráter das pessoas. Deixar que os exemplos negativos sobressaiam-se a ponto de transformar a imagem do Brasil no país da corrupção, da malandragem e do “jeitinho” é fechar os olhos para a nossa realidade, é ignorar os exemplos de lealdade e cidadania que constantemente fazem parte de nossas vidas.

(produzido na disciplina de Leitura e Produução de Texto, curso de Letras/ UFRGS, professora Susana de Azeredo)

sábado, 9 de maio de 2009

As primeiras eleições da cidade

Ele era o único advogado na pequena cidade de Rincão do Leão. Era uma cidadezinha recém emancipada, antes pertencente à Lomba Grande, mas que graças ao esforço e empenho de alguns políticos e sacanas (ou políticos sacanas mesmo), de olho nos cargos que poderiam ocupar - vereadores, cargos de confiança e assessores - foi rapidamente separada e recebeu sua autonomia, dinheiro público, verbas para investimentos em saúde, educação, saneamento etc, que jamais seriam aplicados no seu devido destino. No Brasil é incrível, mas qualquer lugarejo como aquele se transforma em município. E como toda cidade recém emancipada, Rincão do Leão precisaria de um prefeito. As eleições se aproximavam e ele, que já era velho conhecido por seu poder e influência, sem dúvida iria se candidatar. O pior de tudo é que seria eleito.

Todos os habitantes do local o conheciam por um motivo ou outro - não necessariamente por um bom motivo. Não havia uma pessoa na redondeza que não soubesse quem era Marcelino Castilhos. Era famoso pelas causas duvidosas que defendia e ganhava na Justiça como advogado. Todos sabiam que ele tinha muito dinheiro. Era uma das únicas pessoas com ensino superior na localidade de economia essencialmente rural.

- Você precisa sorrir o tempo todo quando caminhar pelas ruas. Abrace as vovós e segure criancinhas no colo. Diga às mães delas que você fará escolas de primeira linha, com merenda e ótimos professores, posto de saúde com pediatra de plantão 24 horas. Diga isso sorrindo o tempo todo, Marcelino! – instruía Marcovaldo, seu assessor de campanha, que já recebera a promessa de um importante cargo de confiança em seu gabinete quando seu comparsa fosse eleito.

- Eu detesto crianças, Marcovaldo, e você sabe disso! Elas que não comecem a chorar, berrar ou, pior ainda, a fazer xixi e a fralda a vazar em mim! Eu juro que jogo aquelas pestes no chão – retrucava o candidato.

- Então pegue as crianças maiores que você não corre esse risco, não pegue os bebês. As maiorzinhas não choram e não fazem xixi. Mas você precisa fazer um esforço Marcelino, tudo pelas eleições e pela minha graninha. E não vai esquecer daquele por fora que acertamos para assim que você assumir. E se esquecer da minha grana já sabe que eu abro o bico e te ferro.
- Capaz Marcovaldo. Você sabe que pode confiar em mim. Deixa comigo que a tua grana tá na mão!

E as eleições se aproximavam. Marcovaldo era o braço direito de Marcelino na campanha, dizia tudo que ele devia fazer, como se portar, como se vestir, o que dizer, o que não dizer... O político fez promessas fabulosas, convenceu a todos que iria incentivar a agricultura familiar, apoiar as pequenas empresas agrícolas da região, reduzir impostos, colocar escolas de qualidade, dar transporte escolar gratuito, construir um novo hospital, um novo posto de saúde, uma nova creche, uma quadra de esportes e tudo mais que lhe questionassem ele dizia sem hesitar que já estava em seu planos de governo.

Não há dúvidas de que Marcelino foi eleito e hoje dirige arbitrariamente a prefeitura de Rincão do Leão. Distribuiu cargos de confiança a todos os seus cúmplices daquela empreitada. Marcovaldo continua como seu assessor e recebe muito dinheiro. Aquelas foram, contudo, as primeiras eleições do município. Para a próxima, uma nova chapa de oposição já está mobilizada. Trata-se de um movimento formado por quase todos os moradores da cidade. Eles garantem que Marcelino nunca mais será eleito e que seus dias como político estão contados.

(produzido na disciplina de Leitura e Produção de Texto, curso de Letras/ UFRGS, professora Susana de Azeredo)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O Primeiro Dia dos Namorados

Era o nosso primeiro dia dos namorados juntos. Eu trabalhava à noite e, por isso, a nossa comemoração aconteceu de tarde. Escolhemos o parque mais bonito da cidade. O vento era frio naquela terça-feira, 12 de junho, mas sentar em um banco ao sol seria um programa super agradável. Ainda lembro do cheiro úmido das plantas, do sorriso lindo do meu amor, da doçura com que ele segurava a minha mão e fazia carinho nos meus cabelos. Meu coração batia rápido, minhas mãos suavam, minha barriga sentia um friozinho gostoso. O olhar de Alex era o mais especial que eu já recebera em toda minha vida. Olhos verdes, profundos, sinceros, apaixonados e que faziam eu me sentir a mulher mais feliz da humanidade. O olhar penetrava em minha alma e tomava conta de toda minha existência.

Não queria que aquele momento acabasse jamais. O mundo ao nosso redor havia desaparecido. Era um dia de semana à tarde e nós estávamos ali, naquele paraíso da natureza, enquanto as outras pessoas trabalhavam ou cuidavam de suas rotinas. Nós éramos privilegiados, tínhamos a oportunidade de desfrutar daquele maravilhoso dia de sol, de frente para um lago, com árvores e flores de todas as espécies ao redor.

Trocamos presentes e cartões com juras de amor, poesias e declarações. Um arrepio percorreu meu corpo ao ler as palavras que Alex me escrevera. Nunca alguém tinha escrito para mim versos tão bonitos. O cartão tinha o cheirinho do perfume dele. Alex tinha um excelente gosto, tanto para perfume, quanto para presente. Ele me deu um CD do compositor grego Yanni, até então, confesso, desconhecido por mim. Fui sincera e disse a ele que não conhecia o músico, e ele garantiu que eu iria gostar. Dito e feito: música instrumental, canções profundas e vibrantes, que me faziam filosofar sobre a vida e me sentir mais apaixonada. Não podia haver presente mais romântico. Para ele, junto com uma carta, eu dei um livro de poemas de Jorge Luis Borges, autor mais conhecido por seus contos e que eu havia descoberto recentemente também como poeta. Na primeira página deixei uma dedicatória com todo meu amor.

Após a troca de presentes, caminhamos lentamente pelo parque, contornando o lago e brincando com os patinhos que vinham até a beira. Tiramos algumas fotos para que aquele dia ficassa para sempre registrado. Eu tinha um sorriso constante nos lábios e ele também. A atmosfera que nos envolvia era de felicidade, amor, cumplicidade e realização. Não sei precisar quanto tempo havia passado, sei apenas que já tínhamos caminhado bastante e estávamos do outro lado do parque quando, de repente, percebi que não carregávamos nada nas mãos. Os presentes! – gritei em um misto de angústia e aflição por havermos os esquecido no banco em que estávamos sentados. Foi como se retirassem algo de muito valor de mim. Não pelo preço do livro ou do CD, mas principalmente pelo conteúdo dos cartões que havíamos escrito.

Ninguém poderia roubar a carta que eu havia escrito a Alex. Era somente para ele, não dizia respeito a mais ninguém. E o cartão que eu havia recebido! Tenho certeza que jamais seriam reproduzidos da mesma forma, por mais que escrevêssemos novamente. Eles representavam os nossos sentimentos naquele instante da vida. Em uma fração de segundo, antes de tomarmos qualquer atitude, imaginei a nossa história sendo violada por um estranho. Imaginei um intruso lendo os nossos cartões, comentando os versos com outros estranhos, rindo com ironia e deboche de trechos que não gostasse... Uma parte essencial da minha vida estava exposta, sendo totalmente devassada, correndo perigo.

O livro e o CD não eram meros objetos, pois possuíam uma dedicatória única no mundo. Eu poderia comprar dezenas de outros exemplares iguais, mas não teriam o mesmo valor. Nenhum outro livro de Borges viria com aquela dedicatória. Eu sequer possuía um rascunho do que havia escrito. Se o volume tivesse sido realmente perdido ou furtado jamais poderíamos imaginar o caminho que ele seguiria em sua existência. Talvez anos depois eu pudesse me deparar com ele, quando sequer estivesse procurando, em algum sebo, centro cultural ou biblioteca. Eu poderia até empreender uma busca neses locais. O mesmo aconteceria ao meu CD. Talvez pudesse parar em alguma audioteca ou loja de discos usados. Quem sabe o ladrão não os vendesse para algum desses espaços a fim de ganhar algum dinheiro?

Poucos segundos se passaram até que Alex me resgatasse daquele estado de perplexidade e desamparo em que eu me encontrava. Ele agarrou minha mão com firmeza e, instintivamente, começamos a correr com velocidade, atravessando o parque. Aquela parecia uma longa distância a ser percorrida. Não sei precisar, mas talvez fosse algo entre um e dois quilômetros. O parque era grande e nós estávamos exatamente no lado oposto ao banco onde havíamos sentado. Eu não tinha preparo físico para correr, mas subitamente adquiri força e velocidade.

Corremos de mãos dadas, algo que eu nunca tinha feito. Talvez por estar com ele me motivando e pela vontade infinita de não deixar nossa história exposta em um banco do parque é que minhas pernas corriam com uma rapidez imensamente superior ao que eu me julgava capaz. Corremos, corremos, corremos, como duas crianças atrás de seus presentes de Natal. Corremos o máximo que podíamos. Eu já imaginava avistar alguém vasculhando a sacola dos presentes. Olhava inclusive para as mãos dos que passavam para ver se um deles, por acaso, portava o que perdêramos.
Foi de repente que meus olhos avistaram, em cima do mesmo banco em que sentáramos, a nossa sacola! Sim, lá estava ela, com o CD, o livro, a carta dele e o meu cartão, tudo a salvo! Meu coração pode retomar os batimentos normais, em um misto de alívio e conforto. Ninguém mexera, ninguém roubara nada. A nossa história permanecia intacta.

(produzido na disciplina de Leitura e Produção de Texto, curso de Letras/ UFRGS, professora Susana de Azeredo)

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Dica de teatro

Com a promoção do Departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS, tem início hoje, dia 6, a temporada do espetáculo teatral “Procura-se Uma Comédia”. O espetáculo é constituído de três pequenas histórias, contadas a partir de referências da máscara cômica e do cinema mudo e é resultado do trabalho originado nas disciplinas de Atelier de Criação Cênica II e Atelier de Composição Cênica II. As apresentações, com entrada franca, ocorrerão todas as quartas-feiras do mês de maio, nos horários de 12h30min e 19h30min, na Sala Qorpo Santo, Av.Paulo Gama s/nº, Porto Alegre. Outras

informações através do telefone (51) 3308.4318 ou email:iaeven@ufrgs.br

O melhor trote do mundo

Ela havia sonhado com aquele dia. Era o dia do trote que aplicavam na Ufrgs aos calouros. O ambiente ainda era novo para Letícia, que não conhecia bem a faculdade. Os veteranos haviam preparado uma série de brincadeiras e sacanagens para receber a turma de “bixos” do curso de Arquitetura. Letícia havia colocado uma camiseta velha, tênis e uma calça desgastada, pois sabia que aconteceria o trote. Sabia que sairia de lá com as roupas sujas e cheias de tinta, estava prevenida.

Passaria certamente por situações difíceis, engraçadas e até constrangedoras. A estudante, contudo, esperara por aquele momento e inicialmente até queria passar pela experiência. Era a realização de um sonho – havia estudado e se esforçado muito no vestibular. Uma rotina rígida de estudos durante o ano para estar lá naquele instante. Por isso, estava entusiasmada e feliz em participar daquele que seria, para ela, uma espécie de rito de passagem para a vida adulta – o seu ingresso na vida acadêmica, a caminhada rumo ao seu futuro, rumo à profissão que ela escolhera.

Queria ser arquiteta, construir edifícios, projetar ambientes, decorar casas. Tinha um talento todo especial para tal atividade desde criança, quando brincava de desenhar a planta de sua casa e dos locais em que gostaria de morar. Pintava a parede do próprio quarto, decorava os espaços, surpreendendo aos pais com seu bom gosto e criatividade.

Os veteranos fizeram com que os “bixos” se apresentassem em uma roda e, como de costume em qualquer trote, dissessem o seu “estado civil”, ou seja, queriam saber quem seriam os possíveis alvos de investidas nas próximas festas da faculdade e mesmo durante as aulas. Letícia se apresentou. Disse sua idade, onde morava, que torcia para o Grêmio e o que gostava de fazer.
Faltou falar o estado civil!, gritaram alguns veteranos. Sim, ela intencionalmente não dissera nada sobre isso. Hesitara tocar nesse assunto, pois nem ela mesma saberia definir seu “estado civil”.

Pensava em Felipe, o colega de natação com quem estava saindo e por quem estava totalmente envolvida e apaixonada. Como não tinham assumido oficialmente a relação até aquele dia, respondeu “soleira”. Como faziam com todas as mulheres que respondiam isso, todos os veteranos do sexo masculino bateram palmas e vibraram.

A vez de Letícia passou, o restante da turma se apresentou, mas a resposta “solteira” retumbava em sua mente como um eco pesado, difícil de ser processado. Não estava satisfeita com a resposta. Queria mesmo ter respondido “namorando”, “comprometida” ou “namorando o Felipe”. Era uma mulher romântica e convencional, gostava das coisas a moda antiga. Queria que o garoto a pedisse oficialmente em namoro, perguntasse com todas as letras se ela queria namorar e, de preferência, lhe entregasse um buquê de rosas e um cartão apaixonado no momento do pedido.

Felipe morava também em Cachoeirinha, há algumas quadras de sua casa. Fazia curso de Ciências Aeronáuticas na PUC, sonhava em ser piloto e viajar pelo mundo. Para manter a forma e também como hobby, praticava natação. Foi onde se conheceram e começaram a sair há quase dois meses. Seus olhos verdes profundos e brilhantes encantavam Letícia. Quando não se encontravam, falavam ao telefone. O clima entre eles era de início de um relacionamento, estavam se conhecendo. Seus gostos e preferências combinavam em muitas coisas, cada dia descobriam algo novo no outro. Constantes novidades e entusiasmo pelas duas partes. Ainda não haviam tido, porém, uma conversa que deixasse claro que estavam realmente namorando. Letícia, com sua intuição feminina apurada, achou melhor esperar o momento certo e não tocou no assunto até então para não pressioná-lo, preferia que ele introduzisse o assunto.

O trote continuou e estava então chegando ao fim. A vibração, o entusiasmo com aquele ritual, porém, foi diminuindo na medida em que ela foi ficando mais e mais suja, sentindo suas roupas molhadas e o cabelo pesado de tinta. A vaidade começou a bater forte e ela queria se arrumar, sentir-se limpa novamente. Não estava mais se sentindo confortável. A brincadeira já tinha lhe saturado e já seria hora de parar. Deu-se conta que teria que voltar para casa de ônibus com suas roupas no estado deplorável em que se encontravam. Após uma manhã inteira de brincadeiras e arrecadação de dinheiro na sinaleira com os tênis retidos, nenhuma parte de seu corpo escapara da sujeira - uma mistura de tintas de várias cores, erva-mate, esmalte e até catchup e mostarda.

Tudo o que ela queria era não ser reconhecida no caminho até sua casa. Estava feliz por ter ingressado na faculdade, mas incomodada com sua apresentação e aparência. Percebeu que o trote não era assim tão divertido quanto idealizara antes de passar por ele e que tudo o que mais queria era poder chegar em casa, tomar seu banho, relaxar e colocar uma roupa limpa e confortável. Projetando mentalmente todo o trajeto e o esforço que teria que desprender para chegar em sua casa em Cachoeirinha, aborreceu-se. Teria que pegar dois ônibus, enfrentar as pessoas a olhando de cima a baixo, a analisando, rindo, comentando sobre o trote. Quanto aos estranhos, não se preocupava. Não queria mesmo era que algum conhecido a visse daquele jeito.

Quase delirava apenas ao imaginar sua cama quentinha. Absorta nesse pensamento, colocara de forma automática a bolsa no ombro após entregar aos veteranos os vinte e dois reais que arrecadara na sinaleira e receber seus tênis de volta. Não desejando, mas sem poder evitar, ouviu alguém chamar por seu nome. Resistiu em olhar e fingiu não ouvir, mas a voz era insistente. Para seu desespero, era a última pessoa no mundo que gostaria que a encontrasse naquela situação, naquela forma lastimável de apresentação, naquela imundice: Felipe.

- Letícia! Nossa, o que fizeram com você! Que bom que te encontrei...

Ela olhou para o rapaz assustada e receosa de que fosse realmente ele. Sem querer acreditar, viu Felipe em sua frente; Seu cérebro não queria admitir que aquilo estivesse acontecendo. Sim, era ele, Felipe. Sentiu que suas bochechas ficaram vermelhas de vergonha e suas mãos suarem incessantemente.

- Felipe? Você por aqui?!, disse num misto de surpresa e inconformidade.

Queria responder algo como “vá embora”, “não sou quem você está pensando”, “não te conheço”, mas não conseguir dizer mais nada: ficou muda, sem ação, perplexa. Ela estava horrível, feia, suada, nojenta, fedorenta, nada atraente para um pretendente a namorado. Queria morrer, mas simplesmente não tinha o que fazer.

- Oi querida. Vim te fazer uma surpresa. Sabia que hoje era o dia do teu trote e vim te buscar. Como eu iria deixar minha namorada voltar para casa de ônibus nesse estado? Achei que uma carona seria bem-vinda.

Ela estava nervosa demais com a situação, pensando na sua imundice, pensando em seu cabelo desajeitado, mas ouviu bem quando ele usou magicamente a palavra namorada. Namorada, namorada, namorada! – seu coração acelerou radiante. Ele estava, sim, se referindo a ela! Ele a chamara de namorada! Letícia pulou em seu pescoço, o abraçou, o beijou. Esqueceu o constrangimento com a roupa, com a sujeira, com a aparência e disse que aquela era uma surpresa maravilhosa, que era muito bom ele estar ali, que se sentia honrada em ser a namorada dele e em podê-lo chamá-lo de namorado também.

Não foi um pedido formal, não veio com um buquê de flores e um cartão como ela imaginava. Entretanto, foi a melhor surpresa que poderia lhe acontecer em meio àquela situação constrangedora em que Letícia se encontrava. Foi um dos dias mais marcantes de sua vida, o dia do trote do vestibular e o início do namoro com Felipe. Para completar, ganhara uma carona e não precisaria voltar para casa de ônibus.

(produzido na disciplina de Leitura e Produção de Texto, curso de Letras/ UFRGS, professora Susana de Azeredo)