quarta-feira, 6 de maio de 2009

O melhor trote do mundo

Ela havia sonhado com aquele dia. Era o dia do trote que aplicavam na Ufrgs aos calouros. O ambiente ainda era novo para Letícia, que não conhecia bem a faculdade. Os veteranos haviam preparado uma série de brincadeiras e sacanagens para receber a turma de “bixos” do curso de Arquitetura. Letícia havia colocado uma camiseta velha, tênis e uma calça desgastada, pois sabia que aconteceria o trote. Sabia que sairia de lá com as roupas sujas e cheias de tinta, estava prevenida.

Passaria certamente por situações difíceis, engraçadas e até constrangedoras. A estudante, contudo, esperara por aquele momento e inicialmente até queria passar pela experiência. Era a realização de um sonho – havia estudado e se esforçado muito no vestibular. Uma rotina rígida de estudos durante o ano para estar lá naquele instante. Por isso, estava entusiasmada e feliz em participar daquele que seria, para ela, uma espécie de rito de passagem para a vida adulta – o seu ingresso na vida acadêmica, a caminhada rumo ao seu futuro, rumo à profissão que ela escolhera.

Queria ser arquiteta, construir edifícios, projetar ambientes, decorar casas. Tinha um talento todo especial para tal atividade desde criança, quando brincava de desenhar a planta de sua casa e dos locais em que gostaria de morar. Pintava a parede do próprio quarto, decorava os espaços, surpreendendo aos pais com seu bom gosto e criatividade.

Os veteranos fizeram com que os “bixos” se apresentassem em uma roda e, como de costume em qualquer trote, dissessem o seu “estado civil”, ou seja, queriam saber quem seriam os possíveis alvos de investidas nas próximas festas da faculdade e mesmo durante as aulas. Letícia se apresentou. Disse sua idade, onde morava, que torcia para o Grêmio e o que gostava de fazer.
Faltou falar o estado civil!, gritaram alguns veteranos. Sim, ela intencionalmente não dissera nada sobre isso. Hesitara tocar nesse assunto, pois nem ela mesma saberia definir seu “estado civil”.

Pensava em Felipe, o colega de natação com quem estava saindo e por quem estava totalmente envolvida e apaixonada. Como não tinham assumido oficialmente a relação até aquele dia, respondeu “soleira”. Como faziam com todas as mulheres que respondiam isso, todos os veteranos do sexo masculino bateram palmas e vibraram.

A vez de Letícia passou, o restante da turma se apresentou, mas a resposta “solteira” retumbava em sua mente como um eco pesado, difícil de ser processado. Não estava satisfeita com a resposta. Queria mesmo ter respondido “namorando”, “comprometida” ou “namorando o Felipe”. Era uma mulher romântica e convencional, gostava das coisas a moda antiga. Queria que o garoto a pedisse oficialmente em namoro, perguntasse com todas as letras se ela queria namorar e, de preferência, lhe entregasse um buquê de rosas e um cartão apaixonado no momento do pedido.

Felipe morava também em Cachoeirinha, há algumas quadras de sua casa. Fazia curso de Ciências Aeronáuticas na PUC, sonhava em ser piloto e viajar pelo mundo. Para manter a forma e também como hobby, praticava natação. Foi onde se conheceram e começaram a sair há quase dois meses. Seus olhos verdes profundos e brilhantes encantavam Letícia. Quando não se encontravam, falavam ao telefone. O clima entre eles era de início de um relacionamento, estavam se conhecendo. Seus gostos e preferências combinavam em muitas coisas, cada dia descobriam algo novo no outro. Constantes novidades e entusiasmo pelas duas partes. Ainda não haviam tido, porém, uma conversa que deixasse claro que estavam realmente namorando. Letícia, com sua intuição feminina apurada, achou melhor esperar o momento certo e não tocou no assunto até então para não pressioná-lo, preferia que ele introduzisse o assunto.

O trote continuou e estava então chegando ao fim. A vibração, o entusiasmo com aquele ritual, porém, foi diminuindo na medida em que ela foi ficando mais e mais suja, sentindo suas roupas molhadas e o cabelo pesado de tinta. A vaidade começou a bater forte e ela queria se arrumar, sentir-se limpa novamente. Não estava mais se sentindo confortável. A brincadeira já tinha lhe saturado e já seria hora de parar. Deu-se conta que teria que voltar para casa de ônibus com suas roupas no estado deplorável em que se encontravam. Após uma manhã inteira de brincadeiras e arrecadação de dinheiro na sinaleira com os tênis retidos, nenhuma parte de seu corpo escapara da sujeira - uma mistura de tintas de várias cores, erva-mate, esmalte e até catchup e mostarda.

Tudo o que ela queria era não ser reconhecida no caminho até sua casa. Estava feliz por ter ingressado na faculdade, mas incomodada com sua apresentação e aparência. Percebeu que o trote não era assim tão divertido quanto idealizara antes de passar por ele e que tudo o que mais queria era poder chegar em casa, tomar seu banho, relaxar e colocar uma roupa limpa e confortável. Projetando mentalmente todo o trajeto e o esforço que teria que desprender para chegar em sua casa em Cachoeirinha, aborreceu-se. Teria que pegar dois ônibus, enfrentar as pessoas a olhando de cima a baixo, a analisando, rindo, comentando sobre o trote. Quanto aos estranhos, não se preocupava. Não queria mesmo era que algum conhecido a visse daquele jeito.

Quase delirava apenas ao imaginar sua cama quentinha. Absorta nesse pensamento, colocara de forma automática a bolsa no ombro após entregar aos veteranos os vinte e dois reais que arrecadara na sinaleira e receber seus tênis de volta. Não desejando, mas sem poder evitar, ouviu alguém chamar por seu nome. Resistiu em olhar e fingiu não ouvir, mas a voz era insistente. Para seu desespero, era a última pessoa no mundo que gostaria que a encontrasse naquela situação, naquela forma lastimável de apresentação, naquela imundice: Felipe.

- Letícia! Nossa, o que fizeram com você! Que bom que te encontrei...

Ela olhou para o rapaz assustada e receosa de que fosse realmente ele. Sem querer acreditar, viu Felipe em sua frente; Seu cérebro não queria admitir que aquilo estivesse acontecendo. Sim, era ele, Felipe. Sentiu que suas bochechas ficaram vermelhas de vergonha e suas mãos suarem incessantemente.

- Felipe? Você por aqui?!, disse num misto de surpresa e inconformidade.

Queria responder algo como “vá embora”, “não sou quem você está pensando”, “não te conheço”, mas não conseguir dizer mais nada: ficou muda, sem ação, perplexa. Ela estava horrível, feia, suada, nojenta, fedorenta, nada atraente para um pretendente a namorado. Queria morrer, mas simplesmente não tinha o que fazer.

- Oi querida. Vim te fazer uma surpresa. Sabia que hoje era o dia do teu trote e vim te buscar. Como eu iria deixar minha namorada voltar para casa de ônibus nesse estado? Achei que uma carona seria bem-vinda.

Ela estava nervosa demais com a situação, pensando na sua imundice, pensando em seu cabelo desajeitado, mas ouviu bem quando ele usou magicamente a palavra namorada. Namorada, namorada, namorada! – seu coração acelerou radiante. Ele estava, sim, se referindo a ela! Ele a chamara de namorada! Letícia pulou em seu pescoço, o abraçou, o beijou. Esqueceu o constrangimento com a roupa, com a sujeira, com a aparência e disse que aquela era uma surpresa maravilhosa, que era muito bom ele estar ali, que se sentia honrada em ser a namorada dele e em podê-lo chamá-lo de namorado também.

Não foi um pedido formal, não veio com um buquê de flores e um cartão como ela imaginava. Entretanto, foi a melhor surpresa que poderia lhe acontecer em meio àquela situação constrangedora em que Letícia se encontrava. Foi um dos dias mais marcantes de sua vida, o dia do trote do vestibular e o início do namoro com Felipe. Para completar, ganhara uma carona e não precisaria voltar para casa de ônibus.

(produzido na disciplina de Leitura e Produção de Texto, curso de Letras/ UFRGS, professora Susana de Azeredo)

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